o último dia

[foto-poema]

A pálida luz banha a escada naquela tarde inerte, como se não quisesse deixar nenhum brilho.
Mas as sombras projetam-se impiedosas como lanças que apontam para a dor daquele momento.
Sobe devagar cada degrau, o cão a acompanhar cabisbaixo.

Jazem sobre o móvel gasto sem mais nenhum sentido.
Enfileiradas, como a proteger a si mesmas... São ainda fortes!
Cinco mil anos não se perdem assim.

A família que nunca existiu parece mais forte do que jamais havia sido.
Afinal, com o vínculo desfeito, cada um pode finalmente... ser.

Com passos inevitáveis penetra fundo nas entranhas claustrofóbicas da vida que nunca havia sido.
A morte sim, ali fazia sentido.

As marcas parecem quadros vivos: as imagens enfim podem existir.

Palimpsestos em meio a profundas rachaduras, feridas cruas de dores infindas.

No chacra da outrora vida, repousa agora a urna do corpo último,

com a luz a lhe perscrutar a alma ausente.

O jornal como única companhia, afinal sempre fora assim, mesmo em vida.

Ossos moídos pontiagudos em meio às cinzas inofensivas, mortas.
Os restos a espelhar a vida que é tanta morte agora.

O cão que sabe que nunca mais haverá depois, assiste triste. Chora, só ele.

No último gesto, uma gota de afeto.
Pensa que era mesmo ali que o pai gostaria de ficar a morte inteira.

Apressado, sai espalhando a morte que insiste em não terminar.
Fecha o portão. O cão atrás, saltando para a vida que começa agora.

[novembro de 2015, seis anos depois]

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